Estava eu em sala de
aula quando fui chamada para comparecer na sala da diretoria do colégio.
Apreensiva, passei uma tarefa para a turma, prometendo que daria ponto positivo
para quem fizesse os exercícios que estávamos desenvolvendo. Meu objetivo era
evitar a tradicional bagunça que se forma quando o professor se ausenta da
sala. O diretor, pessoa de minha alta estima, apresentou-me um deputado federal
e seu filho, um garoto de 10 anos aproximadamente. Sentei-me para ouvir a queixa:
o pai relutava em aceitar a recomendação que a assessora pedagógica da
instituição dera ao filho dele. Dissera que o melhor para o menino era ser
matriculado na APAE. Isso não poderia acontecer nunca: um filho seu na APAE! (a
entidade não gozava do prestígio educacional que apresenta hoje em dia). O
diretor havia me chamado, pois sabia de meu trabalho como professora particular
e psicopedagoga. Conversamos um pouco e eu marquei de ir à casa dele logo após
as aulas daquele dia. Quando cheguei à residência da família, os pais estavam
ausentes e o menino estava com a empregada na sala, comendo em frente ao
aparelho de televisão. Esperei o término da refeição e pedi para ir ao quarto
dele. Resolvi começar antes mesmo de falar com os pais, pois fui informada que
ambos não tinham hora para voltar para casa. Havia um primogênito, cuja a
diferença de idade entre irmãos era de 12 anos. Como o mais velho tinha um negócio
próprio, vinha para casa para dormir, comer e aproveitava para atormentar o
caçula, como mais tarde pude verificar. Fazia criticas pesadas sobre o jeito de
ser de seu irmão.
Começamos a conversar,
ou melhor, eu iniciei um monólogo, pois ele não falava com ninguém, a não ser
com a empregada. Esta, por sua vez, adentrou ao quarto com uma bandeja com suco
e bolachas e começou a responder minhas perguntas no lugar do menino. Este, por
sua vez, voltou a comer o lanche, como se não tivesse acabado de jantar. Estava
obeso e sua camada de gordura, na minha concepção que passaria a se formar a
partir desse momento, funcionaria como um isolante do mundo e mais, alimentado
por sua única interlocutora.
Os pais chegaram
tarde, pediram desculpas pelo atraso, pagaram as horas que lá permaneci, mas
não cumprimentaram o filho, nem sequer “boa noite”. Eles preferiram atendimento
domiciliar, pois o pai temia sequestro e não dispunha de motorista no período
noturno. Saí de lá com a certeza que estava diante de um grande desafio. Em casa, refleti muito e montei um plano
pontual para salvá-lo, aumentar sua mínima autoconfiança e plano global, no qual aplicaria a Pedagogia
Waldorf.
Como havia recebido “carta
branca” dos pais, fui até à escola do menino e pedi transferência dele para um
colégio menor, cuja diretora era minha conhecida. Ao saber da mudança de colégio,
o menino reavivou. O material didático do novo colégio, de alta qualidade, era
redigido com letra miúda. Levei a uma máquina de Xerox e ampliei cada folha.
Recortei o conteúdo e colei, em sequencia, em caderno A3 de desenho.
Evidentemente, só trabalhávamos com esse material em casa e líamos sempre o que
seria dado no dia seguinte. Ou seja, quando ele ia à escola já sabia o que
seria apresentado e já havia resolvido os problemas comigo. Sua nova classe,
com poucos alunos, se enturmou logo com ele e o menino estava feliz por ter
deixado para trás seu passado de humilhação e de ser classificado com um “retardado”.
Todas as noites e fins de semana trabalhávamos juntos nas matérias de anos anteriores,
unindo-os com os do ano letivo. Para explicar história eu fazia teatro com ele;
para a geografia do Brasil, um grande
mapa em argila com relevos e rios. Uma lousa no quarto, com gizes coloridos
ajudavam na aritmética e na língua portuguesa ( azul para substantivo, amarelo
para adjetivo e vermelho para verbo)- adaptação da Pedagogia Waldorf.
Cantávamos músicas que escrevíamos e decoramos o quarto dele com aguadas,
desenhos livres, formas e geométricos. (quando era professora de classe Waldorf,
tive boa orientadora nessa área- Leonor Bertalot).
Nesse período, a
família apercebeu-se do desenvolvimento do menino e passaram a nos dar apoio. A
empregada ficou proibida de dar-lhe comida a qualquer hora e, assim, ele
emagreceu. Passou de ano, acompanhei-o por mais dois anos e terminamos nosso
trabalho. Não nos vimos mais, pela própria dinâmica da vida.
Há alguns anos, eu
estava descendo a Rua Marquês de Itu, em direção à Santa Casa de São Paulo
quando ouvi:
- Oi, tia! Olhei e vi
um médico "barbado", grande, de jaleco branco e pensei que ele
tivesse se enganado.
-Você não se lembra de
mim, Stella?
-Desculpe-me, não.
- Sou Fulano, filho daquele
deputado. Queriam levar-me para a APAE e estudamos juntos, agora você se
lembra?
- Claro que sim, você está muito diferente,
grande e forte, mas eu me lembro de você. Conversamos um pouco e ele me disse:
- Sou médico pediatra
aqui na Santa Casa, formado em Universidade Pública. Estou casado e faço
aqueles desenhos com meus filhos. Por sinal, deixe-me seu telefone porque
talvez eu venha a ter problemas com meu filho mais velho!
Assim que ele
continuou seu caminho, eu chorei de emoção por ver seu sucesso, sua doçura e
seu desenvolvimento humano e agradei aos céus por termos mais um médico a
cuidar de nossas crianças.
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